Tuesday, October 31, 2006


Estava no fim do corredor, encostada à parede branca que se encontrava ao lado da janela, de pé observava as pessoas que passavam na rua. O seu olhar era triste como de um cão, ao perceber que o dono o vai abandonar. Encontrei-a naquela manhã por acaso, enquanto me cruzava com uma enfermeira. A forma como olhava as pessoas era estranha e misteriosa, parecia que já me conhecia. Observei-a de longe, era alta, tinha longos cabelos negros, as feridas que tinha no pulso indicavam que tinha sido amarrada, a cara estava marcada por uma violência que eu só tinha visto em pessoas sofriam com violência doméstica. Tinham-lhe batido. Compreendi a sua tristeza e o seu olhar.
Aproximei-me.
Toquei-lhe no braço e cumprimentei-a. Não sorriu, não falou. Olhou-me durante segundos.
Virou-me as costas, caminhou alguns passos, coxeando, deitou-se e perguntou-me:
- Têm que me observar tantas vezes ? Já estou cansada de tudo isto...
- Não lhe vinha fazer nenhum teste só queria saber como se sente neste momento.
Olhou-me de alto a baixo e disse:
- Não é médico?
- Claro que sou.
- Então que lhe interessa o que sinto?
- Os médicos, também se interessam pelos seus doentes enquanto pessoas, não olham para eles como meros pacientes.
- humm desculpe mas nem todos são assim.
- Isso é como tudo na vida, há bons e maus profissionais em todos os campos.
-Eu sou estudante.
- Foi o que calculei. Que estuda?
-Estou no liceu, tenho 17 anos.
-Gosta de andar no liceu?
- Agora já não... nem sei se lá volto.
Nesse momento uma grossa lágrima desceu-lhe pela face rosada, outra lhe seguiu.
Dei-lhe um lenço e calei-me.
- Não sei quem me fez isto- disse entre soluços- nem sei porquê.
- Calma tudo se vai resolver ripostei eu, pensando que tinha sido vitima de um assalto ou de uma richa entre alunos. Não tinha noção de que era algo bem mais grave.
- Não percebe... foram vários, eu sei porque me lembro dos risos, nem sei de qual deles é....
- ...
- Não fiz nada, apenas ia apanhar o autocarro ao lado da escola.
-Não se preocupe vai se descobrir de certeza, a policia não esteve aqui?
- Claro, fui encontrada na rua, inconsciente.
- Trataremos de si, e se for preciso muda de escola, curam-se as feridas e segue-se em frente. - Estava a tentar animá-la, dentro do possível, mesmo sabendo que não estava a dizer coisa com coisa... Foi aí que a bomba explodiu.
- As feridas demoram a sarar,e à marcas que ficam para toda a vida. Fiquei grávida de um deles.
- Não lhe posso dar a minha opinião relativamente a esse assunto, como sabe têm duas opções. A lei permite que escolha,é um caso excepcional.
- Não precisa de dar já tomei uma decisão.
- Mas sabe as opções que tem?
- Sim, ou faço um aborto e mato o filho que tenho no ventre porque fui violada por quatro pessoas ou mais e nem sei quem é o pai e nem quero saber, porque quem quer que seja não deve ser boa pessoa, espancou me juntamente com amigos e violou me- parou por momentos e olhou para a janela.
- ou aceito este filho como uma dádiva de Deus, porque apesar de não ter sido uma escolha minha e de ter sido forçada a aceitá-la, é uma criança que não tem culpa, não tem culpa de ter sido gerada no meio da violência em vez de amor, que não tem culpa que eu olhe para ela e me lembre das dores que senti ao ser amarrada, do trauma que sinto ao me lembrar do cheiro do corpo de cada um, enquanto me violavam, da venda que tinha nos olhos, da tristeza queme rodeia, não tem culpa e não a posso julgar por isso, tenho de aceitar por mais que me custe, é uma decisão minha sei que muitas não o fariam, e respeito-o. Mas também sei o valor da vida, e aquele bébé, que é meu apesar de tudo, têm o direito de viver, e eu a partir do seu amor, hei de esquecer tudo, as dores, os vómitos, as cicatrizes, as marcas vão desaparecer e dar lugar à esperança.
Olhei para ela e senti o rosto molhado, nunca tinha chorado à frente dos doentes, mas também nunca tinha ouvido alguém dizer algo assim. Sorri-lhe e abracei-a.
Ela chorou no meu ombro.
Sai e pedi à enfermeira para consultar a ficha dela, indicava a presença de seis tipos de sémen diferentes, tinha sido espancada com um pedaço de madeira e tinha ainda fracturas na coxa, num braço e na cabeça. Tudo tinha acontecido`à dois meses e meio, mas ainda permanecia no hospital porque tinha sido operada inumeras vezes às facturas que tinha sofrido, além disso não se sabia do paradeiro dos pais, segundo a enfermeira provavelmente não a queriam em casa, havia muita gente que pensava de maneira diferente.
Peguei no telefone e liguei à Teresa, já não falávamos desde o dia em que o João morreu, estranhou o meu telefonema e disse:
-Que precisas?
-De ajuda..
-De que tipo de ajuda?
- Tenho uma rapariga grávida aqui, que quer ter o filho, não sei se tem condições financeiras...
-Vou já para aí.
-Obrigado.
A Teresa chegou, trazia o vestido de seda que a mãe lhe tinha dado à uns anos, era e sempre fora bonita, os seus olhos verdes sorriam a qualquer pessoa, e a sua boca desenhada numa cara redonda era simples e fina.
Cumprimentou a Sara, e falou com elao resto da tarde, disponibilizou-se para a ajudar em todo, roupas, casa, comida, emprego, escola.
A Sara sorriu, pela primeira vez.
Olhou-me e vi que me estava a agradecer com aquele simples olhar.

"Porque tantas vezes as opções mais dificeis são as mais correctas, não se deve desistir de uma pessoa, deve-se ajudar. "- sete meses depois nasceu o Pedro, e coloquei esta frase numa tableta no meu gabinete.

8 comments:

joaquim said...

Fiquei sem palavras!!!
Perdoa-me por perguntar, mas é verdadeira esta história ou é para representar algo de muito bonito e extraordinário?
A vida pela vida, sempre.
Obrigado pela visita ao "Que é a Verdade?"
Abraço em Cristo

CristalizArte said...

J...nem sei bem o que dizer. Apenas que gostei muito, que continues com a força e a sensibilidade que tens, a mostrar nas tuas palavras a Luz de Deus nas nossas vidas. Um abraço,

AVC

CristalizArte said...

E a fotografia, belíssima! Muito bem escolhida. Parabéns!

AVC

Andante said...

Obrigada pela tua partilha!
Chorei!

Beijos peregrinos

Andante said...

Obrigada pela tua partilha!
Chorei!

Beijos peregrinos

J said...

Andante, fiquei muito sensibilizada com o que escreveu. Obrigado.
Um grande beijinho

Tiago Tavares said...

J, muitos parabéns pelo blog! As suas estórias levam-nos ao essencial. E gostei especialmente desta.
Tiago

Leonor said...

Perante isto, fico sem nada para dizer. Mas não posso ficar calada... tenho de deixar palavras soltas como alegria, gostei, adorei, fez-me pensar em coisas que nunca tinha relacionado, emocionei-me, senti Deus... fez-me mais feliz!
Obrigada mesmo pelo que escreve!
Beijinho

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