
Acordei no Hospital. A cabeça ardia-me, os olhos mal se abriam e não sentia metade do meu corpo. O cansaço que me invadia era algo inexplicável, nunca tinha sentido algo assim. Fiquei alguns minutos, parado a tentar acordar aos poucos e a perceber onde estava.
Ainda estava meio atordoado quando apareceu a enfermeira, perguntou-me como estava e se conseguia falar, depois de beber um copo de água perguntei-lhe:
- Onde estou? Não me lembro de nada. – e pousei o copo com a minha mão que estava meia ligada.
Ela respondeu:
- Está no Hospital de S.Maria, é normal que não se lembre foi internado recentemente, sofreu um grave acidente de viação- e ajudou-me a sentar me na cama.
Ao início estranhei a resposta, acidente de viação? Mas aonde e quando? Não me lembrava de nada, mas aos poucos a minha memória foi recuperando e o sofrimento invadiu-me, fui me lembrando de tudo.
Fui buscar a Maria à estação já passava das seis horas, íamos jantar fora. Namorávamos à mais de cinco anos, e estávamos a pensar em casar. Já tínhamos quase tudo planeado ao pormenor, a casa, o local de casamento, os convites, o nosso único problema, era o local de trabalho dela, que devido a uma reestruturação da empresa, tinha sido alterado e agora ela tinha que ir e vir todos os dias de Sintra até Lisboa.
Jantamos num restaurante perto de minha casa, tivemos uma conversa agradável, e decidimos ir para minha casa. Vimos um filme, convidamos uns amigos e passamos uma noite animada. No final da noite fui levá-la a casa, ainda não eram dois da manhã, estávamos parados num cruzamento perto do centro de Lisboa, e um carro ao fazer uma curva derrapou, o condutor perdeu o controlo da viatura e bateu-nos.
Após me ter lembrado do acidente, fiquei exaltado, o suor percorreu-me o corpo, e berrei, chamei o seu nome, queria saber onde estava. Os médicos apareceram na sala, preocupados e perguntaram-me que se passava, perguntei-lhes por ela. Pela troca de olhares percebi que não tinha sobrevivido. Comecei a gritar, as lágrimas inundaram-me a cara, o desespero tomou conta de mim, chorei toda a tarde, e toda a noite, deram-me sedativos para me acalmar, mas a dor que sentia, a qual é impossível de explicar, invadiu-me por dentro.
O meu processo de recuperação foi lento, parti a bacia, uma perna e tinha uma factura exposta do braço. Mas para mim nada disso interessava, estava deprimido, e revoltado com a vida, a tristeza invadiu-me e a depressão também.
Comecei a fazer as perguntas erradas “Que mal fiz eu a Deus para isto me acontecer ?”, “ Porquê a mim meu Deus?”, “ Porquê?”.
Afastei me de muitos amigos, fechei me em mim mesmo, precisava de pensar, precisava de estar só, queria chorar todos os dias da minha vida, não conseguia compreender o que me estava a acontecer.
Até que um dia, faltava pouco tempo para eu sair do hospital, recebi uma chamada, era do Júlio, um colega meu do liceu que nunca mais tinha visto. Fiquei surpreendido por me ter ligado visto que eu não sabia nada dele à mais de quinze anos. Tentei não atender a chamada, alegando dores, tentei não falar mesmo com ele, mas a pessoa que estava do outro lado da linha disse-me já irritada:
- Olhe já estou farta de lhe recusar as chamadas , e além disso este seu amigo está a ligar do Porto, portanto se não quer falar com ele diga-lhe o senhor. – e sem que eu pudesse dizer alguma coisa, passou a chamada ao Júlio.
Ouvi a sua voz rouca do outro lado do telefone, ainda sem saber muito bem o que dizer, fiquei calado por segundos, depois disse-lhe:
- Júlio, como estás? – e fiz a voz mais natural do mundo.
O Júlio, respondeu-me cordialmente e explicou-me que tinha tido conhecimento do meu acidente por amigos nossos, porque estas noticias se espalham depressa.
Falamos durante pouco mais de cinco minutos, eu não lhe disse muita coisa, visto que nem me apetecia falar, mas ele mesmo eu não tendo dito nada de especial, ficou muito satisfeito por puder falar comigo, prometeu, para meu grande desgosto na altura, que me tornaria a ligar. Desliguei o telefone e pensei que nunca mais iria saber dele, porque me haveria de ligar? Já não falávamos à mais de quinze anos, que teria para me dizer? O telefonema de hoje, é compreensível, ele ouviu que tive um acidente e quis saber se eu estava bem, quis me desejar as melhoras, mas daí a tornar-me a ligar era um grande “passo”- pensei.
Adormeci a pensar na alegria do Júlio ao falar comigo.
Acordei no dia seguinte indisposto, mais um dia no Hospital, mais um dia em que me recordava o que tinha acontecido, mais um dia de tristeza, e de repente o telefone tocou, era o Júlio de novo. Irritado disse à Senhora que estava do outro lado da linha que tinha acabado de acordar, mas ela mais uma vez não quis saber e passou-me ao Júlio. Desta vez, pedi-lhe que não falássemos porque nem tinha tomado o pequeno-almoço, e então ele desejo-me um bom dia e pediu-me se lhe podia ligar, eu fiquei meio parvo a olhar para o telefone que queria desta vez? Como só queria despachar aquela conversa disse-lhe que sim que lhe ligava.
Levantei-me com muita dificuldade e tomei o pequeno almoço, no fim, rasguei o número do Júlio e pensei que não lhe ia ligar, não queria falar com ninguém, pus os pedaços de papel no bolso e caminhei com passos tristes pelo hospital.
Estava já a chegar muito lentamente a um corredor, quando me deparei com uma capela, nunca pensei que o Hospital tivesse capela, e fiquei à porta, com receio que alguém me visse a entrar. Espreitei para ver se estava lá alguém e devagarinho entrei.
Naquele momento pensei na minha vida e chorei, chorei imenso, só Lhe perguntava porque me tinha abandonado, só queria que me devolvesse a minha vida, nem O deixei falar, levantei-me rapidamente e tentei desesperadamente sair da capela, mas quando estava a sair, o pé falhou-me e cai redondo no chão.
Não me conseguia levantar, as lágrimas encheram-me os olhos, por me sentir inútil, triste e dependente de outros.
Ainda estava no chão a ouvir os meus soluços, quando vi os pedaços de papel do meu bolso espalhados, era o número do Júlio, pensei em deixá-los ali, mas depois nem sei porquê peguei-lhes e pu-los de novo no bolso.
Não Lhe quis falar, sabia que tinha que o fazer, mas não o quis fazer.
Uma enfermeira levou-me até ao meu quarto, mudou-me o gesso e deu-me o telefone, disse-me que já tinham ligado várias vezes para mim a pedir que ligasse para o número que tinha guardado.
Estava meio abalado mas concordei em ligar, disquei o número lentamente, e ouvi a voz do Júlio, alegre e aberta do outro lado, desta vez falou comigo imenso tempo, ao inicio era uma conversa casual do momento, mas depois começou a fazer-me perguntas, que tentei resistir, no fim já tomado pelo cansaço e pela tristeza, deixei cair todas as minhas defesas e disse-lhe tudo o que sentia, a revolta, a incompreensão, a tristeza, chorei, não tive vergonha de lhe dizer o tão triste que estava, ele ouviu-me durante muito tempo e depois tomou a palavra e disse-me:
- Nuno, eu sei que estás a passar um mau bocado, mas também estas a fazer as perguntas erradas.
- Perguntas erradas disse-lhe? – perplexo.
-Sim, perante o sofrimento, o mal , a doença, a morte, que são inevitáveis e que não dependem de nós de que te serve recusar e revoltar-te? Não te resolve o problema, somente o agrava, mais deprimido ficas, mais angustiado, mais desesperado.
Esqueceste te de tudo o que Ele te ensinou? Esqueceste te d´Ele? – perguntou-me, e esperou que respondesse, mas apenas ouviu o silêncio, e continuou:
- Lembraste das discussões que tínhamos na cantina do liceu sobre Cristo? Lembraste de defenderes com unhas e dentes o Seu Nome, de dizeres que a sua paixão por Nós era algo que te fazia confusão, porque: " Ele se ofereceu ao Pai, por Nós, integrando o sofrimento e a morte. E depois ressuscitou, mostrando-nos a confirmação de Deus que O aceitou , e nos mostrou o caminho de Amor e de liberdade. "
Tantas vezes nos explicaste isso, e tantas vezes não te compreendi, mas a vida dá muitas voltas e eu segui o caminho que me deste a conhecer e descobri Cristo aos poucos na minha vida. Comecei a frequentar a igreja e a aperceber-me que fazia parte dela, comecei a ter uma vida activa como leigo, comecei a espalhar a palavra d´Ele aos outros. Aos poucos e poucos caminhei cada vez mais com Ele ao meu lado.
Mas não falemos de mim, pelo menos para já.
Relativamente ao que te estava a dizer, acho que há uma frase de S. Paulo que resume muito bem o sofrimento pelo qual passas neste momento “ Os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com o peso da glória que se há de revelar em Nós “,- calou-se por momentos e continuou:
- Mas se não gostares desta frase conheço outra de S.Agostinho que também acho que se aplica a esta situação “ Entre a morte de alguém e o juízo final, há ainda um oceano de misericórdia a atravessar” .
Agora sim, gostava de te contar uma coisa, quando saímos do liceu, aproximei-me de Deus, e passado alguns anos, comecei a fazer Exercícios Espirituais, que me fizeram crescer muito na minha Fé, e na minha relação com Deus, houve um dos exercícios que me marcou muito, porque mudou toda a minha forma de olhar para a minha vida.- Parou de novo e ouvi a sua respiração ténue.
Estava de tal maneira emaranhado na sua conversa que lhe pedi que continuasse, ele pediu-me só para beber um copo de água e continuou:
- Santo Inácio de Loyola, que sei que conheces, diz que “ O Homem se deve fazer indiferente” ou seja o Homem deve estar livre, disponível perante tudo o que o rodeia, de tal maneira que não queira mais saúde que doença, mais riqueza que pobreza, somente desejando o que mais nos conduz ao fim para o qual fomos criados. Ora bem, eu lembro-me de ter ficado pasmado com tudo isto, desde quando é que eu não desejo mais saúde que doença ? Mas depois de muita oração, e reflexão com Deus é que percebi, é que apesar da saúde ser um bem, que deve ser agradecido, é relativo, porque não é total, porque hoje posso estar bem e manhã já não.
Ou seja eu devo saber aceitar o que a vida me reserva, e aceitar é difícil Nuno, porque tantas vezes não percebemos o que Deus nos propõem, mas faz parte da vida, e foi nesse momento que percebi a minha limitação como ser humano, e vi tudo de outra forma, eu que valorizava a minha posição social, que olhava para o que era meu como um bem adquirido comecei a saber viver sem nada, isto é, comecei a não ter necessidade de ser mais rico que os outros, percebi que Ele nos aceita como somos, independentemente se nos sentimos frustrados, tristes ou desanimados com a vida. Ele só quer o nosso bem, mesmo que o que nos dá não nos pareça nada bom, tudo o que nos acontece tem sempre um lado positivo, e todas as experiências de vida tem um objectivo; que aprendámos algo.
Percebi, à luz do mistério Pascal de Cristo, que Ele, que sofreu, morreu e ressuscitou por nós para nos mostrar o verdadeiro amor, o verdadeiro caminho, Ele que ofereceu todo o seu sofrimento ao Pai, então eu devia fazer o mesmo, e cada vez que estou mal, entrego o meu sofrimento a Deus, e agradeço-Lhe por me conceder através da Fé a possibilidade de participar na entrega de Cristo.
Mas tudo isto custa Nuno, mas deves rezar sobre isto, Ele não te abandonou, jamais o faria, fala com Ele. Reza Nuno, Ele quer falar-Te, pára para O ouvires.
Ouvi a sua respiração do outro lado do telefone, arfava desalmadamente. Duas lágrimas corriam-me pela cara, e agradeci-lhe por tudo. Falámos mais vezes ao telefone, todos os dias, durante várias horas, e Ele falava-me através do Júlio, e fui ao seu encontro, com lágrimas nos olhos na minha oração diária. Ajoelhei-me diante d´Ele, e pedi-Lhe o seu perdão, e Ele abraçou-me como Pai.
Quando sai do Hospital, fui visitar o Júlio, queria revê-lo, queria abraçá-lo e agradecer-lhe por me ter levantado e dado a mão, a mão de Cristo, sem ele, eu não teria o sorriso nos lábios que tinha quando sai pelo meu próprio pé do hospital. Claro que ainda tinha um longo caminho a percorrer, a Maria tinha morrido e eu tinha muito que fazer, mas a maneira como aceitei a sua morte e tudo o que aconteceu, mudou, devido à minha Fé.
Sem o Júlio eu não teria redescoberto a minha Fé, não me teria reaproximado de Cristo, o Júlio deixou Cristo viver nele e através dele, Cristo falou-me, e abraçou-me, pegou-me ao colo no momento que mais precisei.
Soube a morada dele, e resolvi aparecer sem lhe dizer , queria lhe fazer uma surpresa. Chegado a casa dele, ninguém me abria a porta, e passado um bom bocado, julgando que me tinha enganado, abre-me uma enfermeira, fiquei preocupado, perguntei lhe se o Júlio estava doente, e ela riu-se e disse:
- O menino Júlio nunca está doente.
Visivelmente espantada pela minha pergunta indicou-me o quarto do Júlio, e percorri o corredor sozinho até a um quarto com uma janela enorme, e uma grande cama.
Na cama estava deitado o Júlio, esboçou um sorriso ao ver-me, e disse-me:
-Não esperava ver-te tão cedo Nuno. – e semi cerrou os olhos.
Eu olhei para ele espantado, seria este Júlio, que me tinha ligado tantas vezes quando tive no hospital, este Júlio, que está preso a uma cama? Não sabia que lhe dizer.
Ele apercebeu-se da minha situação e disse:
- Ainda não tinha tido oportunidade para te dizer, tinha que te preparar Nuno, desculpa me. Estou tetraplégico à mais de dez anos, tive um acidente de mota e parti a coluna vertebral. Não precisas de olhar para mim com pena, porque ofereço ao Senhor a minha doença, e estou preparado para quando Ele quiser eu partir na grande viagem.
Coloquei a minha mão em cima da sua, e pedi-lhe que me perdoasse por não me ter informado mais cedo sobre a sua situação, mas ele explicou-me que após ter tido o acidente precisou de se adaptar à nova vida que o Senhor lhe confiara, e que por essa razão andou desaparecido durante uns tempos, contudo de vez em quando vai aos hospitais dar o seu exemplo aos outros, umas vezes vai falar aos doentes terminais, para que tenham amor à vida, outras vezes vai falar a outras vitimas de acidentes, e também fala com os que mais precisam. Foi precisamente numa dessas suas visitas hospitalares, que na sua cadeira de rodas, deu de caras com a minha maca, num corredor, eu estava a dormir, mas as lágrimas corriam me pela cara mesmo a dormir, reconheceu me e prometeu-Lhe que me ia ajudar.
Já passaram mais de vinte cinco anos, desde o dia em que reencontrei o Júlio, casei-me, tive filhos e sou avô. O Júlio teve uma presença marcante na minha vida, foi meu padrinho de casamento e é padrinho de baptismo do meu filho. Continuámos a darmo-nos até ele morrer à dois anos, hoje olho para trás e nem sei como teria sido a minha vida sem ele ao meu lado, foi um companheiro de todas as horas, um amigo no Senhor, deu-me a conhecer Cristo, fez-me reencontrá-Lo. Com o Júlio cresci na Fé, cresci na minha relação com Deus, aceitei a morte, o sofrimento e a dor, mesmo não as compreendendo, aceitei as minhas limitações e passei a ver tudo com os olhos que ele via, os de Cristo.
E por isso agradeço-Te Senhor a vida do Júlio, de exemplo de Cristão, de amigo, e de irmão, que me acompanhou e me fez seguir-Te, mostrando-me como devia confiar em Ti.
Escrito inspirado no livro " A História de Deus comigo" do P.António Vaz Pinto, sj
Dedicado a todos os que sofrem, para que Cristo os acompanhe e abrace.