Sunday, November 12, 2006


Ainda me lembro do dia em que a vi pela primeira vez. Já passaram tantos anos, mas o seu rosto permanece intacto na minha memória, o seu sorriso, a sua voz, tudo ressoa como se ainda estivesse ao meu lado.

Eu era um simples miúdo de rua, igual a tantos outros, de calças sempre rasgadas, descalço, com a mesma camisa todos os dias, e uma tristeza profunda nos olhos. Não me recordo da minha infância antes do seu aparecimento. Talvez tenha sido como afirma Freud, recalcada. Sei que vivi sempre na pobreza, a minha mãe morreu quando eu era ainda uma criança com pouco mais de dois anos, o meu pai era soldado e combatia com os rebeldes contra o regime. Guardo poucas memórias do meu pai, porque raramente estive com ele, não sei onde nasceu, nem onde morreu, só me lembro das suas partidas, que eram constantes, chegava e partia, até que um dia só partiu.
Éramos nove irmãos, eu era o segundo mais novo, a maioria já não era vivo, só sabia que tinham existido porque a minha irmã mais velha, os tinha conhecido a todos, e contava-me histórias de quem tinham sido, mesmo só tendo cada um deles vivido praticamente um ano.

Foi num dia normalíssimo, que a Ilda chegou a Malawi, vinha com um sorriso enorme, que transparecia alegria. A sua roupa era simples, mas bem mais nova do que a minha, trazia pouca bagagem, mas muito para dar.
Ficou encarregue de nos ajudar a estudar, dava-nos aulas todos os dias. Lembrou-me ainda com saudade, das suas aulas, alegres palestras em que aprendíamos tudo de uma forma simples. Roubava-nos gargalhadas, e fazia-nos dar valor ao dia a dia, mesmo quando tudo parecia não ter qualquer valor.
Depois das aulas, uns iam para a apanha da fruta, outros iam trabalhar para obras.
Eu andava sempre a arranjar novos trabalhos, em casa éramos cada vez menos à medida que os anos passavam, mas eu não deixava de ser uma boca para alimentar. Juntava os trocos de vários trabalhos, arranjos, ou carregamentos e dava tudo à minha irmã que tentava, já com tenra idade gerir a nossa humilde casa. O que eu chamava “casa “ não passava de uma cabana de palha e destroços amontoados, cujo interior era sombrio, tínhamos várias panelas, a madeira num canto , e mantas para nos taparmos no chão de terra batida. A bacia estava lá fora junto ao ribeiro. Debaixo da grande árvore, a minha irmã guardava as sementes, o milho, a farinha e o pouco azeite que muitas vezes conseguíamos arranjar.
Não sei se a minha família era cristã, julgo que não. Mas eu sou, comecei a ter aulas de catequese com a Ilda. Ela dava nos aulas normais, em que nos ensinava a ler, a escrever e a fazer contas. Contudo depois do almoço, chamava-nos e lia-nos o catecismo. Foi a partir dela que O conheci. Foi ela que me contou a história da vida D´Ele, foi ela que Mo deu a conhecer. Muitos de nós não compreendíamos as histórias que ela nos contava, mas à medida que o tempo passava, fomos percebendo cada vez melhor as parábolas que ela lia, os exemplos que dava, e os desenhos que fazia.
Guardo daqueles tempos, belíssimas recordações, no meio de toda a pobreza, no meio de toda a tristeza, todos os voluntários nos deram uma grande ajuda. Se hoje sou quem sou, sei que o devo a Ele e a eles, que nunca deixaram de acreditar em mim, que me ajudaram a sair da pobreza, que me estenderam a mão quando eu mais precisei.
Mas apesar de lhes ter agradecido, nunca lhe consegui agradecer a ela. Partiu antes de eu sequer ter pensado nisso.

Eram cinco da manhã, estava eu já a dormir, quando vários assaltantes entraram na casa das irmãs, atacaram a capela, e tentaram roubar o dinheiro que estava no seu interior, a Ilda tinha o sono muito leve, sei disso porque sempre que estive doente esteve ao meu lado e bastava eu estar com a respiração menos regular que ela acordava sobressaltada e acudia-me.
Levantou-se e viu-os de relance, eram três, queriam bater nas irmãs, em pânico foi chamar os outros voluntários, todos tentaram ajudar as irmãs a sair dali, no meio da confusão da fuga, um tiro ouviu-se, e quebrou o silêncio da noite. Passos soaram ao longe, e a escuridão encobriu o rosto triste das pessoas, que se teria passado?
Os voluntários aflitos, procuravam-se uns aos outros, e no meio da escuridão, encontram-na junto ao altar, caída como se tivesse a dormir, estava sobre o Crucifixo que tentara proteger, trespassada, mas com um enorme sorriso, fazia lembrar o Cristo do Sorriso, que no meio do sofrimento transmite alegria, e no meio da dor, Amor.

Nunca me esqueci dela, talvez pela sua presença numa etapa muito importante da minha vida, talvez porque acompanhou o meu crescimento, talvez porque foi quase uma mãe para mim, a mãe que nunca tive.
Chorei como nunca tinha chorado quando o P. Charles me disse que ela tinha ido para o Céu, não é que não quisesse que ela fosse, mas não queria que fosse tão cedo. Tinha saudades dos rebuçados de mentol com cheiro a mofo, que ela nos dava depois das boas notas, dos beijos de bom dia logo pela manhã, do abraço forte e seguro, como se nos envolvesse, antes de nos deitarmos, das palestras, do olhar doce, do sorriso que preenchia toda a sala.

Hoje falo dela a qualquer pessoa, porque acho que foi um exemplo de uma pessoa Santa, dou a conhecer os seus feitos que me marcaram a mim e a muitos.
Marcou-me profundamente a Sua maneira de estar na vida, a sua persistência, o seu Amor, mas principalmente a sua entrega por Ele.
Nunca desistiu de cada um de nós, mesmo quando fazíamos tudo mal, mesmo quando não compreendíamos, mesmo quando a magoávamos.
Tinha trinta e cinco anos quando morreu, era tão jovem, contudo tinha tanto para dar.
Mesmo tendo vivido pouco tempo, viveu a vida na sua plenitude, viveu-a correndo riscos, abdicando da sua pessoa, vivendo para os outros, não se protegendo mas dando-se, porque é dando que se recebe.
Deixou casa, família e amigos, para nos vir ajudar a crescer com Cristo presente nas nossas vidas.
Ouviu O Seu chamamento, e não teve medo, não pensou no amanhã, somente viveu o presente, sem recear a morte, porque confiou totalmente N´Ele, entregou-se por Ele, para Ele e com Ele. Não pensou em nela própria, nos sonhos que tinha, nos projectos que gostava de fazer, nos percursos que ainda achava que ia percorrer, apenas confiou N´Ele, porque sabia que Ele só queria o melhor para Ela. Sacrificou a sua vida, abdicou do seu tempo, de regalias de hábitos tudo em nome D´Ele.

Olho para trás e vejo a sorte que tenho em tê-la conhecido, agradeço a Deus ter me posto a Ilda no meu caminho, peço-Lhe que me guie para Seguir o seu exemplo de bondade , de entrega, de Serviço, de humildade, de Vida, e peço-Lhe também que a tenha no Seu colo para que no Seu Amor encontre a paz.





Em memoria da leiga Idalina Gomes e do P. Waldyr, Padre jesuíta brasileiro.

4 comments:

Era uma vez... said...

Foste ontem ao CUPAV???

EU não te vi!!!

Podera! Com tanta mas tanta gente que estava lá é normal que não nos tenhamos cruzado!

Adorei a homília! Adorei aquela missa! E mais vontade tenho eu de seguir em Missão!

Que acabe o curso depressa!!!

Grande beijinho

Maria João said...

Não a conhecia, mas a morte da Idalina mexeu bastante comigo.

Ela é o exemplo de que ainda existem santos hoje em dia. Tudo deu por Deus. E na hora da morte, acredito que tudo tenha recebido de Deus.

Paz à sua alma, ao do padre que também morreu no mesmo incidente e a todos os que morrem em nome de DEus.

Anonymous said...

É contando a maneira como alguém nos tocou, q melhor relembramos e preservamos a memória de quem nos faz mta falta...
Eu sei, vou passando por isso...
Faço sempre questão de falar de quem me marcou e q ainda me faz mta falta c 1 sorriso no rosto! Se bebo 1 copo levanto-o e brindo em espirito c esse alguem, principalmente se existe aquela musica especial no ar...
Confesso q já fui mais crente em deus...
Confesso q já fui mais crente na igreja...
Mas confesso q sempre quis experimentar partir em missão...
Mas do pensar ao fazer aí está o problema...
Sou demasiado egoista... Há q admitir defeitos...
Tou demasiado agarrada ao meu conforto...
Pode ser q daqui a algum tempo deixe de o ser...
A esperança é a ultima q morre...
Certo?????

Anonymous said...

Passei para deixar-te um beijinho e já agora a agradecer o texto - homenagem a duas pessoas que nos deixam, que exemplo!

malu

Quem escreve

My photo
joana_b_e@hotmail.com

Seguidores